Morte espiritual
Se jesus tivesse transformado pedras em
pães, como, em momento calculadamente oportuno, sugeriu o diabo, teria
comido pão e saciado a sua fome à custa da derrota de sua alma.
Definitivamente, um milagre que se compra a preço de alma, é sempre caro demais,
desnecessário mesmo. Jesus, como era de se esperar, não aceitou a sugestão do
diabo, e com isso, nos ensinou uma lição preciosa. A alma não é negociável. Não
pode ser vendida, apostada ou negociada. Ela é o tesouro maior do homem. Ela é
aquilo que o homem é. O centro a partir do qual, sem exceção, todas as potências humanas, a um só tempo, buscam e encontram, força, equilíbrio, criatividade e inspiração para crescer,
florescer e frutificar em liberdade. A alma é nossa identidade espiritual.
Aquilo que nos faz humanos. Negociá-la numa disputa com o diabo, é colocar-se
em risco de uma perpétua alienação.
O diabo fez o seu costumeiro trabalho. Tentou Jesus três vezes. Ofereceu
pão. Ofereceu poder. Ofereceu o mundo. Todavia, quem é de Deus sabe, a soma de todas essas ofertas ainda
é pouco, ou nada, diante do valor da alma. Porque a alma, se alimentada e
cultivada na presença de Deus, cresce imensamente em valor, a ponto de valer mais do que o
mundo inteiro. Nada é superior ao valor de uma alma. A maior fortuna do mundo, ou a soma de todas as fortunas do
mundo, ainda é coisa muito insignificante, diante do valor manifesto de um
homem de alma. Um homem de alma pura, coração humilde e espírito misericordioso,
coisa rara em nossos dias, vale mais do que o mundo inteiro.
O texto diz que Jesus estava debilitado
pela fome. Uma terrível e cortante fome de quarenta dias. Era visível o seu
sofrimento. O diabo, sempre oportunista, tentou se aproveitar da fraqueza de
Jesus. Ele sempre tenta se aproveitar dos nossos momentos de fraqueza. Mas
Jesus, mesmo faminto, não transformou nem uma pedra em pão. Ele se manteve muito acima da calculada proposta do diabo, porque sabia que existe outro tipo de fome. Uma fome,
talvez, até pior do que a fome de pão. Pior, sim, muito pior, porque a fome de pão pode ser saciada, mas
essa fome não pode ser saciada por pão algum. Uma fome tão atroz, porque é espiritual, que continua,
mesmo quando estamos com o estômago cheio. Uma fome de significado, ou, mais
especificamente, fome de Deus. Fome que acontece e permanece, mesmo quando o
homem encontra-se rico de tudo, tomando banho quente, dormindo em cama macia e tendo
diariamente, diante dos olhos e ao alcance das mãos insaciáveis, uma mesa sempre
farta e variada. Se tivesse transformado as pedras em pães, então, aí sim, teria
sofrido a mais atroz de todas as fomes. A fome de Deus. Uma fome como a do rei
Saul, que mesmo sendo rei e tendo tudo, não tinha paz, porque não tinha o Espírito
de Deus.
Depois de quarenta dias no deserto, o
corpo de Jesus cambaleava de fome, mas a sua alma florescia como o jardim do
Éden, cheia de graça e da presença de Deus. Ele alcançou aquele ponto, onde,
esgotadas todas as forças do corpo, o homem permanece de pé unicamente pela fé
em Deus. A fé pura no Deus que renova as forças do cansado e alimenta o faminto, manteve o espírito de Jesus, firme e inabalável,
diante das cruéis e covardes investidas do demônio. Sozinho no coração do
deserto, cruzando um profundo vale de sombra e morte, em tudo ele estava
atribulado, mas não angustiado. Não pereceria no deserto, como milhares
pereceram, mas alcançaria a cidade de Deus, onde mana leite e mel. Perseguido,
desamparado e abatido, mas não destruído, ele permaneceu de é diante do diabo. Nas profundezas do seu ser, onde diabo algum chega ou vê, não havia
lugares vazios. A sua alma permaneceu, o tempo todo, calma e transparente como um rio que corre manso entre as árvores de um bosque florido. Dúvida alguma surgiu para ofuscar o seu pensamento. Angústia alguma
sufocou o seu coração. Cheio do Espírito Santo, ele estava pleno. Rios de água
viva corriam do seu interior. Estava saciado, pois nem só de pão vive o homem,
mas de toda palavra que sai da boca de Deus. Ele jamais sofreu a dor atroz daquela fome que
nunca morre e que nos persegue, nos alcança e nos prostra sempre, ao menor abalo emocional,
em profundo estado de inquietação e ansiedade, mesmo quando a gente come o
melhor dos pães e dorme na melhor das camas. Faminto de pão, todavia abastecido de um pão superior, que vem
de Deus, ele estava em paz e a sua alma estava satisfeita e rica daquela
serenidade das coisas que vem do Espírito de Deus. Em algum lugar acima do firmamento, podemos
imaginar, legiões de anjos de Deus, aguardavam o momento oportuno para descer e
cuidar dele, servindo-o. Ele não tinha qualquer acordo para fazer com um miserável
anjo caído. Aquele que jamais resistiu a Deus, resistiu ao diabo, e o diabo
fugiu da presença dele.
Com o seu exemplo, Jesus nos ensinou - de
uma vez por todas - que para passar fome, não é preciso ter falta de alimento. Basta se afastar de Deus, e viver de dar atenção ao diabo e transformar as suas pedras em pães.
O mundo está cheio de gente assim. Homens
e mulheres que aceitaram as ofertas do diabo, e construíram a vida sobre areia
movediça. Iludidos por alguma perspectiva errada da vida, considerando apenas o
ponto de vista materialista da existência, cheios de orgulho e ingratidão, imaginando-se
sábios e espertos, negociam a própria alma em troca de um bocado de fama, poder
e (ou) riqueza. Insensíveis ao sofrimento dos outros, construíram grandes
celeiros e estocaram muitas riquezas para a alma. Todavia, enquanto faziam isso,
por só pensarem em si, perderam a alma, ferida pela cobiça, adoecida pela insensibilidade do coração, e morta pelo inesgotável amor ao dinheiro.
Vez ou outra olhando para o céu, mais
por hábito do que por convicção ou temor de Deus, essas pessoas de coração
obstinado, viciadas em construir sobre fundamentos alheios e colher onde não
plantaram, como se fossem os donos do mundo, seguem caminhando pelo caminho largo
da crueldade e da insensibilidade, entesourando ira contra elas mesmas, para o
dia da ira e da manifestação do juízo de Deus, quando Deus retribuirá cada um
conforme o seu procedimento. Até que um dia, ou talvez nunca, dão conta que
apesar de possuírem tudo que sonharam, riqueza, poder, fama e imensos depósitos
de pedras transformadas em pães, por dentro, no coração empedrado, estão
pesadas, completamente consumidas e desabando como velhas casas construídas
sobre a areia, balançando perigosamente como uma velha estrutura corroída por cupins,
dia e noite devoradas pelo vazio angustiante de uma fome maior do que qualquer
fome de pão. Temem e tremem, pois sabem - e não há como não saber - que certamente
desabarão, quando o vento soprar, a chuva cair e as águas subirem violentamente
contra as paredes dos seus castelos de areia.
Enquanto o tempo corre implacável e a
vida se aproxima perigosamente do seu inexorável fim, como quem tem olhos, mas
não vê, eles, pela cobiça transformados em meros bonecos de carne, olham pela
janela, cada vez mais desenganados, perplexos e sobrecarregados pelo fardo
crescente de uma profunda solidão, que permanece viva e cortante, mesmo quando eles estão
acompanhados, e se perguntam: É só isso, a vida? Temem, entre outras coisas, a
morte e o que vem depois da morte, o juízo de Deus. Muito embora, como defesa
interna, resultado do imenso vazio que os devora, lutam - sem vitória alguma - para negar a existência de Deus. A ideia de um Deus que pune o pecador, e que separou um dia para juízo de justiça, incomoda profundamente esse tipo de gente. Mergulhados no
tédio e no medo, cativos de uma existência cheia de pedras transformadas em pães, mas
vazia de verdade, justiça e sentido transcendente, sofrem a angústia miserável
de uma consciência culpada, um verme que nunca dorme e que sabe ser tão pobre e
miserável, a ponto de não possuir mais nada, além de algum dinheiro no banco,
sabe-se lá, embolsado por qual meio ilícito e vergonhoso.
Como meninos
desamparados de pai e mãe, que anseiam colo e ser amados, mas incapazes de
amar, pois só pensam em si mesmos, ou pior, como animais enjaulados que se
debatem por uma oportunidade de fuga, ansiosos para aliviar o tédio, descansar das
decepções da existência e fugir das grades da sua prisão de solidão,
inutilmente vagueiam se agitando contra as paredes dos labirintos da
existência, pagando caro e buscando aqui e ali, perambulando sem destino certo pelos becos da feira das vaidades, sem nunca
encontrar, daí a busca nunca cessar, qualquer coisa, qualquer mesa de bar,
qualquer noitada, qualquer corpo sem órgãos, talvez até uma breve imitação de amor, ou qualquer ilusão ou
vício transitório, mas miserável e previsivelmente recorrente, que lhes
ofereça, por um tempo igualmente breve, alguma consolação para as suas
aflições, decepções e vazios existenciais, e os livre das garras do desespero,
impotência, vergonha e escuridão, que, para eles, fartos de pedras
transformadas em pães, mas vazios de coisas que o dinheiro não pode comprar, fé,
esperança e amor, a vida se transformou... Não são mais do que árvores secas no deserto, morrendo sem jamais
dar algum fruto durável e agradável.
Como o esforço de Sísifo, o esforço deles também é inútil. É inútil,
porque a união-comunhão que eles buscam fora deles, unindo-se desesperadamente
e entregando-se, por preço, a qualquer coisa, vício, traição, vaidade, luxo, drogas,
abusos, orgias e pessoas igualmente sem Deus, só pode ser realizada dentro deles,
pela renúncia de tudo que até agora os motivou, nas profundezas da alma, no fundo do coração,
primeiramente entre eles e Deus. Deus esse que eles, convenientemente, em tempos remotos, para escaparem
dos desertos da existência, abandonaram em troca de um punhado de pedras
próprias para transformar em pães, ficando assim, condenados a morrer perdidos num terrível deserto, fogo consumidor que agora os devora por dentro e por fora, caminhando sempre, mas sem jamais
alcançar a Canaã de Deus.
Portanto, fica dito, que a única possibilidade de um retorno aos campos verdejantes da vida,
deve acontecer a partir de uma renúncia completa às pedras, isto é, renúncia ao espírito do mundo
em favor do Espírito de Deus... Mas isso, eles não querem, nem desejam, viciados
que estão em transformar pedras em pães. Lamentavelmente, que coisa horrível, perderam a alma,
endureceram o coração... Fizeram-se de surdos para o som suave da Palavra de
Deus. Adoeceram na alma. Bateram no peito, empinaram o nariz, e, coisa triste, arrogantemente disseram,
um animando o outro: Somos ricos, adquirimos muitas riquezas e não precisamos
de nada. Não reconhecem, porém, que são miseráveis, dignos de compaixão,
pobres, cegos e nus. Sim, com efeito, eles têm olhos, mas não enxergam. Tem ouvidos,
mas não escutam. Estão mortos nos seus pecados recorrentes, dormentes para a
leveza das coisas que o dinheiro não pode comprar... Do céu vem a condenação
sobre a alma deles: “Continue
o injusto a praticar injustiça; continue o imundo na imundícia; continue o
justo a praticar justiça; e continue o santo a santificar-se". "Eis que venho em breve! A minha recompensa está comigo,
e eu retribuirei a cada um de acordo com o que fez. Eu sou o Alfa e o Ômega, o Primeiro e o Último, o Princípio e
o Fim”. [Apc 22:11-13]
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